segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Restos de um recado para Pi (abra a janela, desta vez quero o som da rua)

A semana começou:
engarrafamentos,
assaltos que a gente vê do ônibus;
quase que a gente perde o ônibus;
fumaça, muita fumaça;
não dá pra cantar, nem pra abrir a janela pra sentir o vento.
Pessoas andando;
pessoas correndo;
discussões via celular;
o casal está andando, ele solta a mão dela enquanto olha uma outra garota andando na rua;
nenhuma das garotas percebe;
mendigos em seu ofício cotidiano;
pago ao trocador, não há troco.
Dois conhecidos se encontram no ônibus;
se cumprimentam efusivamente, conversam,
um não percebe na fala do outro,
mas um deles fez um programa e não quis convidar o outro,
ficou sem graça de comentar o fato,deu um sorriso amarelo, o outro vê o sorriso amarelo,
mas não percebe o que ele significa.
Fecho a janela do ônibus,
para poder respirar o ar viciado mas sem fumaça do ônibus.
Vida!
Viva a segunda-feira!
Viva o fato de nos espantarmos com todas estas coisas!
É um sinal de que ainda estamos lúcidos!

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Cacador de absolutos. Vamos pegar os pombos! (ao som de Stormy Weather, by Billie Holiday)

Música acessível em:
http://www.youtube.com/watch?v=_j4Di2PWwwg&feature=related

Não, você não leu errado. É cacador mesmo, do espanhol, cagador, cagador de absolutos. Ernesto Sabato, poeta de língua espanhola que abandonou a ciência em prol da arte, designava os cientistas por caçadores de absoluto. Obrigado, Pi, pela informação.

Chocolate meio amargo, editor de textos aberto.

Olho para a janela. Chove. Billie Holiday sings "Stormy Weather". Ninguém, nem mesmo Ella Fitzgerald, consegue cantar esta peça como Billie Holiday. Sua voz atinge a janela com as gotas da chuva. Termino o capítulo. Ainda falta outros, eu sei. Mas terminei um capítulo. Minha mente precisa de descanso, agora.

Não, não sou um caçador de absolutos. E discordo do Ernesto Sabato que conheci através de Pi. Cientistas não são caçadores de absolutos -pois, se está perfeito, é qualquer coisa que não ciência, a ciência é algo que está sempre por ser feito. Ela exige a paciência e a esperteza que as crianças têm. Este negócio de senhores circunspectos, sentados em seus ternos, e olhando com um ar severo e erudito, isto não é ciência. A ciência serve para facilitar a compreensão da realidade, não para torná-la indecifrável.

Eu lembro, que, quando era criança, gostava de correr atrás dos pombos. Hoje, às vezes, sento-me no parque para escrever. Vejo crianças, outras crianças, correndo atrás dos pombos. E os pombos -malditos pombos- sempre escapam. Arrogantes pombos, confiantes em sua prodigiosa capacidade de levantar vôo, esperam o último segundo para levantar vôo. Mostram-nos nossa inépcia para caçá-los. Odiosos pombos.

Vejo, também, que as crianças nunca pegam os pombos. Eu mesmo nunca peguei um. Mas elas não desistem. E correm, e correm, e nunca pegam os pombos. Aliás, creio que elas não fazem a menor idéia do que fazer com os pombos, caso venham a pegar um deles. Os pombos sempre fogem. Eles não se importam. Mas as crianças não se importam também. E nunca pegam os pombos, e nunca se cansam de tentar pegá-los. Correm atrás dos pombos sem saber o que fazer com os pombos, e nunca pensam-se fracassadas. Não se importam com não tentar pegá-los. elas querem é simplesmente correr atrás dos pombos.

Não é uma caça. É, antes, uma dança. As crianças dançam com os pombos. E se satisfazem com o chegar próximo aos pombos. Ou melhor, desejam chegar próximo aos pombos. Eles desejam é promover o movimento.

"Veja os pombos, papai! Veja os pombos! Eles voam em todas as direções! Eles voãm em uma só direção!"

E os pais sabem que eles nunca alcançarão os pombos, caso contrário, não deixariam seus filhos perseguirem um animal portador de doenças.

O cientista sabe que nunca alcançará os pombos. Mas ele busca seguir seus rastros, causar movimento. Sempre perseguindo os pombos. É um ofício cansativo, mas prazeroso - como correr atrás dos pombos. É necessário humildade, persistência, fôlego, e fé. Fé de que o esforço vale a pena. É um modo de diferente de lidar com as coisas. Não buscamos certezas. Buscamos conjecturas. Sabemos que tudo o que dissermos estará mais ou menos errado, algum dia.

É um erro pensar que a atividade das crianças pressupõe que elas pensem que um dia poderão alcançar os pombos.

É um erro pensar que a atividade dos cientistas pressupõe que eles pensem que o universo pode ser descrito através de um enunciado.

Eu não caço absolutos. Eu os cago, e cago pra eles, toda manhã, após o desejum.