quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Enxuga as lágrimas, esboça um sorriso. E segue. (ao som de "Chan Chan", by Buena Vista Social Club)

Música acessível em:
http://www.youtube.com/watch?v=UhHWhRTkVBE
Enxuga as lágrimas, esboça um sorriso.
E segue.
Sobe a ladeira, desce a ladeira, vira à direita.
Pensa: Será que os processos de desterritorialização-reterritorialização pertinentes ao modo de subjetivação capitalístico encontram ressonâncias com o pensamento de gênero literário de Bakhtin, quando conjugado com o conceito de atividade de Leontiév?
Segue.
Faz sinal para ônibus. Avisa que pagará com dinheiro. Passa pela roleta. Dirige-se a um dos bancos. Senta. Abre a bolsa e pega o dinheiro. Deixa a bolsa, dirige-se ao trocador. Paga. Volta para o banco, senta. O sinal abre.

Segue.
Pensa em um, dois, três amores. Cantoras, psicólogas frígidas, filósofas, psicólogas deambulantes. Lembra que só quem trabalhou com Saúde Mental fala “deambulantes”. Olha para o vendedor de paçoca, do lado de fora do ônibus.
Segue.
Pensa na qualidade da maior parte dos trabalhos de ciência. Pensa na maior parte dos trabalhos de ciência do Brasil. Pensa na maior parte dos trabalhos de Psicologia feitos no Brasil. Pensa que é muuito difícil mudar isso. Pensa em como a arte produz bem neste país. Pensa sobre os motivos de ter abandonado a música em favor da psicologia. Lembra-se dos seus escritos. Suspira.
Segue.
Olha a ponte. Olha a Baía de Guanabara. Pensa na poluição da Baía de Guanabara. Vê o peixe pulando na água. Sorri. Olha para frente. Olha para a janela, novamente. Pensa como fica a cidade sob esta chuva rala. Olha em direção ao Cristo Redentor eclipsado sob as nuvens. Pensa como fica bonita a cidade sob esta chuva rala, vista da ponte. Pensa na Praça da Bandeira. Lembra-se da bandeira rasgada. Lembra-se de vidas rasgadas, próximas à Praça da Bandeira. Recorda o que acontece com a Praça da bandeira, quando chove razoavelmente na Praça da Bandeira. Recorda que terá de passar pela Praça da Bandeira ao retornar.
Segue.
Encosta a cabeça no vidro da janela do ônibus. Adormece. Acorda. Levanta. Pega a bolsa. Caminha em direção à porta da frente do ônibus. Deseja bom dia ao motorista. Desce do ônibus. Vira à esquerda.

E segue.

domingo, 26 de agosto de 2007

Vai tomar no cú, garotinho branco

O garotinho branco, porque você fica implicando tanto comigo? Não, seu pseudo-intelectual de meia-tijela, eu não escuto jazz pra parecer crioulo intelectual não, e crioulo é a puta que o pariu. Vai tomar no cú. Você não tem a menor idéia do que é ouvir a Nina Simone cantando "Here comes the sun", depois de cantar "Mississipi Goddam", cansada como uma garotinha que sofre abuso sexual do Tio John toda a sexta, mas tem esperança de que um dia isso passe. Você não sabe o que é ouvir Billie Holiday com aquela voz melancólica, cantando "Summertime" lembrando da infância de merda que ela teve, e lembrando que tem uma carreirinha pra ela lá no camarim, após o show. Vai tomar no cú, cara, fica com essa palhaçada aí de ficar escutando a música que dizem no momento que é engajada politicamente só pra dizer que é intelectual engajado. Você não sabe o que é jazz porque vc não sabe ouvir a brincadeira, o diálogo que está ali. Você não sabe brincar, trocar. Quer ser a estrelinha branca do espetáculo.
Vai tomar no cú, garotinho branco, que fica aí falando do sofrimento do pobre e que eu devia pesquisar pobres e questões ligadas à "minha raça". Que fica falando do pobre-sofredor, pobre-batalhador, pobre-alienado. Você nunca entrou na roda de samba, cara, nunca forçou a panturrilha pra subir o morro. Você nunca sentiu ácido de enxofre entrando pela sua garganta na forma de gás, secando e corroendo, você sentindo aquele cheiro de ovo podre, que te alerta que você tem alguns segundos pra descobrir onde está o vazamento -porque este gás anestesia rapidamente o nervo olfativo-, consertá-lo, e fugir. Ou morrer. E isso sob um calor de mais de 10ºC acima do que está lá fora. Você nem sabe que este gás anestesia o olfato. Você nem sabe como é difícil tirar a sujeira de graxa debaixo da unha. É fácil ficar brincando de intelectual e depois voltar pra casa, lá no Leblon, no carrinho que papai te deu. É muito fácil, porque a escurinha que trabalha na sua casa de família já preparou teu jantar, você vai poder dormir no teu ar condiconado, escutando teu sonzinho, né filha da puta?
Vai tomar no cú, garotinho, branco. Aliás, não vai tomar no cú não, porque tem gente que gosta. Vai carregar balde d'água lá no morro. Vai dormir na rua pra poupar passagem de ida-volta lá pra baixada. Vai entrar num shopping da zona sul com a pele bem pretinha, com essa roupa aqui pra ver se alguém te atende. E se alguém não te vigia. Vai tentar caprichar na ortografia e na caligrafia na porra da redação da seleção, porque você precisa pra caramba daquele dinheiro, e tu contou o da passagem de ida e volta. E que na volta você vai até andar mais porque aí você pode suar. Vai, cara, só uma vez, segurar o soro que tua mãe velha tá tomando, sentada na cadeira, no hospital, dando graças à Deus por ter conseguido atendimento.
Vai, cara, e num é só um dia, ou um mês, não. Experimenta fazer isso durante mais de um ano, a vida inteira, e ainda ter de acordar cedo com 60 anos pra limpar empresa lá no centro, ganhando uma merreca e tendo um caralhão de coisa pra limpar, as pessoas passando como se você tivesse de desviar pra elas poderem passar, sem te dar um bom-dia. Vai, filha da puta. Se você conseguir, e isso tudo comendo arroz, feijão, farinha, ovo -quando muito aquela carne batida, marmita com pescoço de galinha-, ah, se você conseguir, aí sim vou te dar o direito de me chamar de alienado, sofredor, batalhador ou o raio que o parta. Enquanto isso, cala a boca, filha da puta, seu merda, e me deixa em paz.
Você não entende de pretos, nem de pobres. E nem de mulheres, nem de gays, nem de camponeses. Você nem entende de você, seu merda. Senão, você não estaria prestando tanta atenção em mim e se lembraria que tu é um latino-americano, filha da puta. E que, se tu tivesse dinheiro mesmo, tu tava beeem longe daqui. Num é? Volta então praquela europazinha de merda que vc cria no seu ar-condicionado e nos deixa em paz.

Luz amarela

A luz amarela. Eu vejo. É ela, escondida pela fresta da janela. As cortinas em tom cru, deixando transparecer ou um tom cru ou um descaso pela cor. Cortinas e tom cru. Como queijo com goiabada. Janela que eu vejo daqui, desta praia quase deserta. O mar brinca, agitado de revolver e moldar a poeira clara. Em tom cru. Bela, iluminada pela luz amarela dos postes que lhe servem de adorno. O sinal grita: alerta! Luz amarela. Os pedrestes ensaiam atravessar, e assim o fazem em seguida. E o carro, então, pede passagem. Pisca-alerta. Passa, pedindo passagem com a singela luz amarela.



Neste texto, eu tive a intenção de transformar essas luzes amarelas, por nós tão ignoradas, em linguagem. Espero que o texto tenha causado a impressão de não haver nada importante, e de que ainda havia algo a ser dito. Assim como nós ignoramos as luzes amarelas.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

O tempo e o Sol

Madeleine Peyroux e o tempo e o Sol. Madeleine Peyroux e o tempo e o Sol. Quantos são os compassos necessários para se mudar uma vida? E, quando se muda, para onde se vai? Madeleine Peyroux e o Sol. Madeleine Peyroux e o Sol. Qual o seu ritmo, Pi, como fazes para viver a vida? Tocas pandeiro, tocas violão? Sim, tocas violão. E quando nem ele toca, Pi? E algo te toca, e tu não sabes o que é? Te escondes? E, como te escondes, Pi? Tu foges? E foges pra onde, Pi? E, se algo te toca, você então faz samba?! Que bossa!!! Qual é o segredo, Pi, de tu achares o certo compasso, a certa melodia, o certo contraponto, o certo contracanto, qual é o segredo? Madeleine Peyroux e o tempo. Madeleine Peyroux e o tempo. Qual é o segredo de habitar a música, música que é por natureza noturna, porque só o noturno consegue passar sem deixar marcas de poder. Ele convida a ficar, e a passar com ele. Por onde passo, como passo, para onde passo, Pi? Qual é o segredo de manter o passo, mas sem perder o compasso, sem fazer virar marcha? Pi samba, Pi toca, Pi, que por definição é indefinível, e os caçadores de absoluto apontam que é inexata.
Para onde se caminha? Não, não é esta a questão. Mas, sim, como se caminha. Como se caminha, Pi?
O tempo e o Sol. O tempo e o Sol. O tempo. E o Sol

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Um chocolate quente, por favor (ao som de "Between the bars", by Madeleine Peyroux)

Música acessível em:





São 22 horas deste domingo. Estou sentado aqui na padaria, bebendo chocolate quente. Sim, sou uma daquelas monótonas criaturas que vão sempre aos mesmos lugares e pedem sempre as mesmas coisas.
"Um chocolate quente, por favor. Forte. E extremamente quente."
Estamos aqui, eu, a caneta e o envelope de carta. Os dois últimos, inanimadas testemunhas de minha solidão. Olho para o hipotético Rogério que estaria sentado ao meu lado, pergunto: "Onde vai reterritorializar-se tudo isso?"
Desculpem esta mensagem um pouco autobiográfica, mas estou aqui, perdido entre o chocolate quente e o caos. Olho para as animadas pessoas que conversam futilidades ao meu redor. Olho para o belo par de olhos também solitário que perscruta um livro e os outros. Pergunto em pensamento:"será que você aguenta o tranco?"
Os jovens burgueses desta cidade burguesa, esculpidos para parecerem jovens anti-moda, esculpidos à moda anti-moda.
E eu aqui, do alto de minha arrogância. Pelo menos, esta arrogância é melhor que o caos. Fudeu, percebi o porquê da arrogância, agora tudo voou como um castelo de cartas. Estou de novo entre o caos e o chocolate. E -puta que pariu- o chocolate acabou. Pago o chocolate, e sigo em direção à rua e ao caos.

domingo, 5 de agosto de 2007

Primeiro movimento

tudo se deteriora. tudo se esvai. somos apenas máquinas de rastros, rastros que serão rastreados somente por aqueles que souberem rastrear. mas como saberão que sabem rastrear? no final das contas, rastros são apenas vestígios. somos a virtualidade de vestígios. virtualidades da produção de sentido. não sei mais pra onde vou, nem quem sou, nem se sou. nem sei se ligo.